Unicesumar
Unicesumar

Missão UniCesumar no Haiti: Dia 5 – Esquecidos

Por Lissânder D. do Amaral

Porto Príncipe (Haiti), 8 de agosto de 2019 - Dia 5

Até aqui nosso público-alvo foram as crianças, mas hoje foi um pouco diferente. A primeira visita ocorreu em um projeto de alfabetização de idosos, o ALFANA (Alfabetizasyon Adilt Nasyon Ayisyen – Alfabetização de Adultos da Nação Haitiana), fundado pela missionária Ana Lúcia. O projeto reúne dezenas de adultos, que, já fragilizados fisicamente, muitas vezes são esquecidos pela sociedade. Ana Lúcia conta que alguns deles eram alcoólatras e, no projeto, recuperaram a sobriedade.

Chegamos ao local e fomos recebidos já no portão de entrada por um grupo de senhoras sorridentes. O espaço é bem menor do que os orfanatos que fomos, e isso exigiu de nós um esforço maior para organizar as mesas de atendimento e a estrutura para os exames oftalmológicos. Logo percebemos que o filtro do ar condicionado da sala de aula estava muito sujo, e então fizemos a limpeza para que não houvesse risco de contaminação.

A sala de aula é pequena demais para comportar todos os alunos e a nossa equipe. Mesmo assim, nos reunimos todos lá e começamos a programação com muita música e danças dirigidas pelas próprias mulheres do projeto. Foi bonito ver essa interação tão natural e humana.

Em seguida, a equipe de oftalmologia já começou a montar seus equipamentos dentro da sala (para realização dos exames é necessário de um espaço escuro). Na mesma hora, a outra equipe de atendimento médico montou três mesas no lado de fora, enquanto que os idosos estavam sentados sob a sombra em uma fileira de cadeiras. A propósito, vale ressaltar que as sombras eram escassas, com exceção daquelas produzidas por um punhado de pequenas árvores e pelos telhados da casa. Tínhanos que ser eficientes, já que os pacientes não aguentariam ficar muito tempo em condições adversas.

O trabalho de ambas as equipes foi intenso. Enquanto ia atendendo os pacientes, o oftalmologista Alessandro ensinava à equipe de alunos passo a passo sobre como fazer os exames. Além disso, os alunos também executavam tarefas específicas, como anotações de dados, montagem dos óculos e análise clínica. Quando uma das pacientes fez um teste de leitura, todos se alegraram com a rapidez como decifrou letras, palavras e frases em créole, já que antes disso, ela lia com muita dificuldade e lentamente.

Ao mesmo tempo, lá fora, no calor, a equipe da Dra. Graciele (que é geriatra) atendia um por um dos idosos, enquanto que o palhaço Pé de Chinelo alegrava os que esperavam atendimento. Olhando de longe, foi possível perceber um belo ritmo de trabalho, em que todas as partes se ajudaram em sintonia. Além do exame clínico, a equipe também aplicou a escala de Rosenberg, que mede os níveis de autoestima. Infelizmente, já pudemos perceber que muitos não se sentem úteis para nada. Esquecidos e abandonados pela família muitas vezes, eles perdem aquele senso de importância que todo ser humano necessita.

O almoço foi macarrão com carne moída. Todos comeram com satisfação e não sobrou nada nos pratos.

Após a despedida do projeto com idosos, fizemos uma votação: vocês aguentam ir a mais um orfanato? A maioria disse sim, e então seguimos para o orfanato Canaã, que nos traria tristes surpresas.

Foi longo o trajeto até o orfanato Canaã. Passamos pelo trânsito infernal e depois por uma região mais montanhosa e seca. No meio do caminho, uma das rodas do carro de Ana Lúcia quase saiu do veículo, problema provavelmente causado pela trepidação constante nas ruas e avenidas da cidade. Os parafusos do pneu foram se soltando ao longo da viagem, e só percebemos porque outros motoristas nos avisaram. Alguns parafusos já tinham ficado para trás, mas eles foram sendo trazidos até nós por haitianos que os encontravam pelo caminho. Como eles conseguiram encontrá-los, isso eu não sei.

Quanto mais tempo demorava para chegar no orfanato Canaã mais forte vinha a sensação de que essas crianças eram esquecidas pela sociedade. Ao chegarmos, a sensação virou certeza. O ambiente árido combinou com o ar de tristeza das crianças e de seus cuidadores. Estavam cansados, doentes e famintos. Não fizeram festa com a nossa chegada, mas depois conseguimos dançar a cantar juntos.

O espaço do Orfanato Canaã é grande e plano. Há várias casas e um espaço redondo com mesas fixas de cimento que funciona como refeitório, mas também espaço para apresentações. E foi lá que começamos as brincadeiras com as crianças. Mas antes de nós, foram as crianças que cantaram canções conduzidas por uma adolescente afinada. Nos emocionamos com o que vimos e ouvimos: dezenas de órfãos esquecidos num país em ruínas levantando suas vozes em um ritmo alegre e singelo. Uma cena improvavelmente positiva em uma terra cheia de probabilidades negativas.

Após as apresentações deles e nossas, incluindo a participação do palhaço Pé de Chinelo, servimos o lanche e iniciamos os atendimentos na área externa do orfanato. Inicialmente, o plano era apenas visitar as crianças e atender os casos mais urgentes. No entanto, haviam mais casos urgentes do que imaginávamos; alguns, bem emergenciais. É o caso do menino Calvensky, de 5 anos de idade e pesando apenas 10 quilos. Suando muito, fatigado, cabisbaixo, apático e trêmulo, ele não sorria e quase não piscava. Ele já estava com insuficiência respiratória e hipoglicemia. A estudante de Medicina Isabela Zucoli perguntou a ele se estava bem, e a criança apenas balançou a cabeça negativamente. Depois de um segundo de diálogo, Isabela assumiu a missão de cuidar dele o tempo todo da nossa visita. Calvensky foi acompanhado com alimentação, exames e medicamentos. Ao final da visita, já estava melhor, mas ainda necessitando de cuidados médicos permanentes. O diagnóstico apontou pneumonia bacteriana causada provavelmente pelas condições precárias e vulnerabilidade por falta de nutrientes.  “Essas crianças comem uma vez por dia apenas. Depois que ele comeu o pão e bebeu o suco que levamos, sua expressão mudou e Calvensky até começou a brincar. Deus sabe onde nos levar e quando nos levar”, disse Isabela.

Outro caso foi de um menino de menos de 10 anos idade sofrendo de peritonite grave. Ele precisa de cuidados médicos urgentes e tratamento contínuo. Mas o problema é que a visita de um médico lá só aconteceria em dezembro. A Dra. Graciele pode atender a todos os casos mais urgentes, prescrever receitas e auxiliar em orientações para o tratamento. No dia seguinte, ela ainda acompanhou a internação de um dos meninos em um hospital da cidade.

Saímos do orfanato Canaã como se tivéssemos saindo de uma guerra: cansados e abatidos com o que vimos e sentimos. “Encontramos um orfanato quase que perdido no meio de uma região isolada. Ainda bem que fomos até lá. Foi o último orfanato que visitamos. Nessa experiência-limite, nossos alunos puderam auxiliar e cuidar de dezenas de crianças, e também aprender a lidar com casos urgentes”, relata Weslley Matos, diretor de Relações Institucionais da UniCesumar e líder da viagem ao Haiti.

Há situações em que a Medicina ganha ares de salvação, devido a urgência e a falta de soluções alternativas. Foi o que aconteceu no orfanato Canaã. Sem a presença dos nossos médicos e estudantes, é possível que algumas das crianças que conhecemos nessa tarde, não sobrevivessem nos próximos meses. Morreriam esquecidos pela sociedade e por nós. Eu nunca teria escrito nada sobre eles, e você jamais teria sabido sobre suas mortes.

Ainda bem que a Medicina estava lá.

Últimas notícias

Categorias